25 Jun Anjos e Demónios
De todos os Demónios internos que temos de enfrentar, os mais difíceis de enfrentar são aqueles que nos ajudaram a vida toda.
Sim, é exatamente isso que escrevi. Demónios que nos ajudaram a vida toda.
Ajudaram a tornarmo-nos nas pessoas que somos hoje. Ajudaram a conquistar tudo o que conquistámos até hoje. Ajudaram a chegar onde chegámos. Verdadeiros Anjos que afinal eram Demónios.
É que muito daquilo que vemos à nossa volta e consideramos comportamentos admiráveis, são o reflexo de respostas automatizadas que desenvolvemos algures na nossa formação para sobreviver emocionalmente.
Atitudes socialmente reconhecidas como ser demasiado disciplinad@, trabalhador, esforçad@, solicit@, competente, perfeccionista, madur@, simpátic@ etc são comportamentos que muitas vezes nos ajudaram a vida toda a suprir uma necessidade profunda nossa. Fosse ela a necessidade de sucesso, de reconhecimento, de fama ou de validação.
Durante anos e anos temos esse Demónio disfarçado de Anjo a sussurrar-nos ao ouvido aquilo que deveríamos fazer para conseguir finalmente ser alguém. Décadas consecutivas com essa bússola interna que nos tornou nas pessoas que somos hoje, que nos levou a conquistar tudo o que temos hoje.
Mas algures nesta viagem, há um dia em que esse sussurro deixa de nos impulsionar. Os valores que antes nos orientavam deixam de fazer sentido e tornam-se opressores da nossa liberdade de ser.
Naquilo que mais parece ser “de um momento para o outro”, deixamos de sentir o mesmo impacto através dos resultados que antes nos moviam. Somos tudo aquilo que desejámos ser a vida toda, somos tudo aquilo que essa voz interna nos dizia que precisávamos de ser (ou somos até mais do que isso) e, no entanto, aquela chama, aquele drive, aquele rush já não vem. Ou melhor dizendo, já não nos chega.
O que acontece é que am alguma medida já nos superámos a nós mesmos e às nossas conquistas.
Ultrapassámos as nossas maiores ambições, os nossos maiores feitos e hoje o nosso instinto diz-nos que a vida não pode ser só isto. E, de repente, num piscar de olhos, o que mais desejamos é poder ser nada.
E esse é o momento em que essa voz orientadora, esse impulso pró-activo de conquista, esse Anjo que trazíamos dentro a vida toda, se torna num Monstro e vira-se contra nós.
Na verdade diz-nos as mesmas coisas de sempre. Diz-nos coisas como por exemplo:
– “Como é que tu ousas colocar essa hipótese de querer não ser nada para ninguém?”
– “Será que não sabes que assim, sem mim, sem o sucesso/fama/reconhecimento, deixas de existir, morres?”
– “Quem é que pensas que és?”
– “Descansar? Como assim? Estás cansada de quê?”
– “O que já fizeste foi pouco. Onde já chegámos não chega. Tem de ser mais. Eu quero mais. Mais. Mais.”
Mas há uma altura em que essas frases, mesmo continuando a fazer sentido na nossa mente, deixam de ter o mesmo impacto no nosso corpo.
Por vezes o nosso cérebro ainda concorda com essas ameaças. Estivemos toda a vida automaticamente programad@s para carregar no play, para meter a primeira e para acelerar a fundo de cada vez que surgem. Mas agora o corpo simplesmente não responde. E, quando tentamos colocar o corpo no mesmo lugar dessas ordens internas que ouvimos a vida toda, ele não atende e transforma essas ordens em delírios. Há uma desconexão entre o eu e o Eu. Percebemos que fomos motivados a vida inteira por uma parte de nós que entretanto se tornou tirana. Ela agora ameaça-nos, assusta-nos, atemoriza-nos.
Mas se nos permitirmos ficar ali tempo suficiente a ouvi-la, se formos capazes de não ceder aos seus insultos e intimidações, vamos percebendo que os prenúncios de destruição de um monstro gigante se transformam nas súplicas aterrorizadas de uma criança desamparada.
Olhamos nos olhos do Demónio que nos ataca para nos vermos a nós mesmos, pequenos, vulneráveis, inocentes. Este é um motivo muito frequente nas histórias de aventura e contos de fada. O momento em que o herói tem de enfrentar o seu maior desafio apenas para se deparar com o reflexo de si mesmo no espelho e perceber que lutou contra si o tempo todo. Esse é o momento em que podemos finalmente ver que a voz da besta implacável era nossa e que, na verdade, escondia lágrimas de medo e rejeição.
Parar de responder automaticamente a este Anjo/Demónio que me deu tudo o que tenho até hoje, mas às custas de me aprisionar a esta Persona de pessoa trabalhadora, disciplinada e com grande capacidade de sacrifício próprio, tem sido das batalhas mais aniquiladoras que tenho enfrentado na vida.
Ainda nem sei o que vai sobrar deste profundo confronto que estou a viver.
Mas continuo acreditando no poder do meu inconsciente e empunhando a bandeira da coerência interna.
Depois da revolução há sempre a renovação.
Que assim seja.
Jo 💙
AI generated art by: Joana Areias
Telma Dinis
Posted at 09:02h, 07 JulhoA forma como escreves…dam! É isto mesmo anjo e demónio no mesmo cesto.
Obrigada pelas palavras.
Joana Areias
Posted at 12:42h, 08 JulhoObrigada Telma! Um grande abraço.
Maria Lemos
Posted at 13:54h, 27 JunhoObrigada por este texto! Ressoou em mim! 🙏
Joana Areias
Posted at 05:39h, 28 JunhoYesss!! Muito grata! <3
Noelia Marreiros
Posted at 12:10h, 27 JunhoEcoooo! Gratidão por partilhar 🙏
Joana Areias
Posted at 05:39h, 28 JunhoQue bom Noelia! Obrigada pelo querido comentário <3