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Eu nem sei o que não sei

Eu nem sei o que não sei

Eu nem sei o que não sei.

Esta foi a frase mais iluminada que ouvi nos últimos dias.

Há 2 anos atrás, quando estava num festival com o Daniel, disse-lhe que estava cansada e que ia repousar um pouco para a nossa tenda. Mas enquanto subia a colina que me levaria à tenda ouvi um grito a chamar pelo meu nome. Era o Daniel. Não conseguiu suportar a ideia de me deixar seguir sozinha para a tenda ao anoitecer num festival com 40 mil pessoas.

Quem nos conhece sabe que não somos propriamente destas coisas. Preservamos muito o nosso tempo connosco mesmos e ambos adoramos estar sozinhos. Talvez terá sido porque estávamos há dias rodeados de tendas só com homens que me olhavam de forma intrusiva de cada vez que passávamos por eles. Não sei o que aconteceu exatamente. Só sei que, pela primeira vez na vida, o Daniel tinha vislumbrado, ao de leve, o que é ser mulher.

Confesso que à medida que subia aquela colina sozinha em direção à tenda estava completamente alerta de tudo o que se passava à minha volta. Estava tensa e a calcular todos os passos que ia dar com o máximo de rapidez quando tivesse de atravessar o corredor de observadores masculinos ao chegar à minha tenda. Estava a passar por tudo isso de forma automática, inconsciente, apenas porque sempre foi assim que vivi como mulher. Como mulher sei que tenho de ter cuidado ao andar sozinha na rua. Como mulher sei que, por exemplo, o simples ato de correr de phones é um risco demasiado alto. Como mulher, sei que não me devo aproximar de carrinhas fechadas com homens lá dentro. Como mulher aprendi a viver alerta. Isso eu sei. E é tão automático que já nem sei que sei. É assim que é.

Mas naquele dia, pela primeira vez, o Daniel percebeu algo que nunca tinha pensado antes. Ele percebeu que nem sabia que não sabia o que significa ser uma mulher a andar sozinha à noite num festival com 40 mil pessoas. Falámos durante horas sobre isso nessa noite e nos dias seguintes. Eu via as expressões de surpresa quando lhe explicava como era para mim andar neste mundo sabendo que tenho menos força do que qualquer homem mal intencionado. É apenas a realidade de ser mulher. É assim que é. É assim que nós vivemos.

Nos últimos dias tenho pensado muito nisto, por causa de mais esta tragédia que aconteceu nos Estados Unidos da América, com 4 agentes de autoridade a assassinar friamente um indivíduo afro-americano.

Eu só posso saber o que sei. Como mulher branca, nascida em Portugal, com os pais que tive, as oportunidades que tive, as experiências que tive, a educação que tive. Isso eu sei.

Mas depois há coisas que eu não sei. E há coisas que eu nem sei que não sei. Tal como o Daniel naquele dia percebeu que havia coisas que ele nem sabia que não sabia sobre o que é ser mulher. Eu, hoje, percebo que há muita, muita coisa que eu nem sei que não sei e, provavelmente, nunca vou saber.

Eu não sei o que é ser um homem negro que nasce nos estados unidos.

Eu não sei o que é ser uma mulher árabe que é obrigada a casar-se aos 13 anos de idade.

Eu não sei o que é ser uma criança chinesa

Eu não sei o que é ser emigrante

Eu não sei o que é passar fome, ou não ter direito a serviços de saúde básicos, ou andar de cadeira de rodas.

Eu não sei tanta coisa. Tanta, que nem sei que não a sei.

Eu simplesmente não sei o que é ser outra pessoa. Eu simplesmente não sei o que é ser tu.

E só posso lamentar alguma vez ter tido a ousadia de insinuar que posso ter alguma ideia do que é ser tu. Não faço ideia. Mesmo.

Gostava que por momentos fosse possível, a cada um de nós, andar pelos pés dos outros. Sabermos o que é viver na sua pele, no seu género, na sua cor. Talvez aí tivéssemos o vislumbre da nossa ignorância e do privilégio que é, afinal, sermos quem somos e como somos.

Mas como isso não é possível, resta-me prestar a minha homenagem sincera a ti. Sejas quem fores. Por tudo o que tu passaste. Por tudo o que tu viveste. E dizer:<

“Não há nada que eu possa fazer para compreender realmente o que é ser tu, mas vou subir essa colina contigo e ouvir o que significa viver esta vida na tua pele, no teu género, na tua cor.”

Recordando sempre que eu nem sei o que não sei e isso é, só por si, um privilégio.

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